Diz numa reunião que algum homem célebre é um homem medíocre, e todos ficarão espantados; dirão que és paradoxal. É que ninguém sabe o que é um homem medíocre.
O
homem medíocre é tolo, estúpido, imbecil? De maneira alguma. O
imbecil está numa extremidade do mundo, o homem de gênio na outra.
O homem medíocre está no meio. Não digo que ocupe o centro do
mundo intelectual, o que seria outra coisa; ele está no meio.
O
homem medíocre estará então no que se chama em filosofia, em
política, em literatura, um justo meio? Encaixa necessária e
certamente nessa opinião?
Também
não.
Quem
está no justo meio sabe disto: tem a intenção de estar nele. O
homem medíocre está no justo meio sem o saber. Está nele por
natureza, não por opinião; por caráter, não por acidente. Mesmo
que seja violento, irritado, extremo; mesmo que se distancie quanto
for possível do justo meio, será medíocre. Terá mediocridade na
violência.
O
traço característico, absolutamente característico do homem
medíocre, é sua deferência pela opinião pública. Jamais fala,
sempre repete. Julga um homem por sua idade, sua posição, seu
sucesso, sua fortuna. Tem o mais profundo respeito por quem é
conhecido, não importa por quê; por quem tenha causado uma grande
impressão. Adulará seu mais cruel inimigo, se esse inimigo
tornar-se célebre; mas fará pouco caso de seu melhor amigo, se
ninguém o elogia. Não concebe que um homem ainda desconhecido, um
pobre homem, um passante, que é tratado de maneira comum, com
desembaraço, possa ser um homem de gênio.
Se
fores o maior dos homens, acreditará, se te conheceu criança,
honrar-te muito comparando-te a Marmontel. Não ousará tomar a
iniciativa de nada. Suas admirações são prudentes, seus
entusiasmos oficiais. Despreza os que são jovens. Mas, quando tu
grandeza for reconhecida, exclamará: bem que eu sabia! Mas nunca
dirá, frente à aurora de um homem ignorado: eis a glória e o
futuro! Aquele que pode dizer a um trabalhador desconhecido: meu
filho, és um homem de gênio! – este merece a imortalidade que
promete. Compreender é igualar, disse Rafael.
O
homem medíocre pode ter esta ou aquela aptidão especial: pode ter
talento. Mas a
intuição lhe é interdita. Não tem uma visão superior; não a
terá jamais. Admite às vezes uma idéia, mas não a segue em suas
diversas aplicações; e se lhe é apresentada em termos diferentes,
não a reconhece: rejeita-a.
Admite
às vezes um princípio; mas se chegares às conseqüências desse
princípio, dirá que exageras.
Se
a palavra exagero não existisse, o homem medíocre a inventaria.
O
homem medíocre pensa que o cristianismo é uma precaução útil,
que seria imprudente dispensar. Entretanto detesta-o interiormente;
algumas vezes, tem por ele um certo respeito convencional, o mesmo
respeito que tem pelos livros em voga. Mas tem horror ao catolicismo:
considera-o exagerado; gosta mais do protestantismo, que acha
moderado. É amigo de todos os princípios e de todos os contrários.
O
homem medíocre pode ter estima pelas pessoas virtuosas e pelos
homens de talento.
Tem
medo e horror dos santos e dos homens de gênio; acha-os exagerados.
Pergunta
para quê servem as ordens religiosas, sobretudo as ordens
contemplativas. Admite as irmãs de São Vicente de Paulo, pois sua
ação realiza-se, ao menos parcialmente, no mundo visível. Mas os
carmelitas, diz ele, para quê servem?
Se
o homem naturalmente medíocre torna-se seriamente cristão, deixa
absolutamente de ser medíocre. Pode não se tornar um homem
superior, mas é arrancado da mediocridade pela mão que empunha a
espada. O homem que ama jamais é medíocre.
O
homem verdadeiramente medíocre admira um pouco todas as coisas; nada
admira com ardor. Se lhe apresentas seus próprios pensamentos, seus
próprios sentimentos com um certo entusiasmo, ficará descontente.
Dirá que exageras; gostará mais de seus inimigos se forem frios,
que de seus amigos se forem quentes. O que detesta acima de tudo, é
o calor.
O
homem medíocre só tem uma paixão, o ódio ao belo. Talvez repita
com freqüência uma verdade banal com um tom banal. Exprima a mesma
verdade com esplendor e ele te vai maldizer; terá encontrado o belo,
seu inimigo pessoal.
O
homem medíocre ama os escritores que não dizem nem sim nem não
sobre qualquer coisa, que nada afirmam, que conciliam todas as
opiniões contraditórias. Gosta ao mesmo tempo de Voltaire, Rousseau
e Bossuet. Gosta que se negue o cristianismo, mas que se o negue
polidamente, com certa moderação nas palavras. Tem um certo amor
pelo racionalismo e, coisa bizarra, também pelo jansenismo. Adora a
profissão de fé do vigário sabichão.
Acha
insolente toda afirmação, porque toda afirmação exclui a
proposição contraditória. Mas se fores um pouco amigo e um pouco
inimigo de tudo, pensará que és sábio e reservado. Admirará a
delicadeza de teu pensamento, e dirá que tens o talento das
transições e das nuances.
Para
escapar à acusação de intolerância que lança a todo aquele que
pensa com vigor, vai se refugiar na dúvida absoluta; mesmo assim não
dá à dúvida seu próprio nome. Procura dar-lhe a forma de uma
opinião honesta, que reserva os direitos da opinião contrária, com
a aparência de dizer alguma coisa sem dizer absolutamente nada. É
preciso acrescentar a cada frase uma perífrase adocicante: parece,
se ouso dizer, se é permitido exprimir-se assim...
Resta
ao homem medíocre em atividade, em exercício, uma inquietude: o
medo de comprometer-se. Exprime também alguns pensamentos roubados
do senhor de La Palisse, com a reserva, a timidez, a prudência de um
homem temeroso de que suas palavras ousadas demais possam abalar o
mundo.
A
primeira frase do homem medíocre que julga um livro trata sempre de
um detalhe, e habitualmente de um detalhe de estilo. É bem escrito,
dirá, quando o estilo é fluente, morno, incolor, tímido. É mal
escrito, dirá, quando a vida circula na tua obra, quando forjas tua
linguagem como quem fala, quando dizes teus pensamentos com aquele
frescor que é a sinceridade do escritor. Ama a literatura impessoal;
detesta os livros que obrigam a refletir. Gosta dos que se parecem
com todos os outros, dos que confirmam seus hábitos, que não
explodem seu molde, que permanecem em seus limites, dos que sabemos
de cor antes de serem lidos, porque são semelhantes a todos que
lemos desde que aprendemos a ler.
O
homem medíocre diz que Jesus Cristo deveria se ter limitado a pregar
a caridade, sem fazer milagres; mas detesta ainda mais os milagres
dos santos, sobretudo dos santos modernos. Se lhe contas um fato
sobrenatural e contemporâneo, dirá que as lendas fazem um bom
efeito nas vidas dos santos, mas que devem se restringir a elas; e se
observares que o poder de Deus é o mesmo de sempre, responderá que
exageras.
O
homem medíocre diz que há o bem e o mal em todas as coisas, que não
devemos ser absolutos em nossos julgamentos, etc, etc.
Se
afirmas fortemente a verdade, o homem medíocre dirá que tens
excessiva confiança em ti mesmo. Ele, que tem tanto orgulho, não
sabe mesmo o que é o orgulho! É modesto e orgulhoso, submisso
perante Voltaire e revoltado contra a Igreja. Sua divisa é o grito
de Joad: corajoso somente contra Deus! [Racine, Atalia, ato
III, cena VII]
O
homem medíocre, em seu pavor das coisas superiores, diz que estima
sobretudo o bom senso; mas não sabe o que é o bom senso. Entende
por esta expressão a negação de tudo o que é grande.
O
homem medíocre pode muito bem ter essa coisa sem valor que chamam,
nos salões, de espírito; mas não pode ter inteligência, que é a
faculdade de ler a idéia no fato.
O
homem inteligente eleva a cabeça para admirar e adorar; o homem
medíocre eleva a cabeça para zombar: tudo que está acima dele
parece-lhe ridículo, o infinito parece-lhe o nada.
O
homem medíocre não crê no diabo.
O
homem medíocre lamenta que a religião cristã tenha dogmas:
gostaria que ela ensinasse somente a moral; e
se lhe dizemos que sua moral decorre dos dogmas, como a conseqüência
decorre do princípio, responderá que exageramos.
Confunde
a falsa modéstia, que é a mentira oficial dos orgulhosos de baixo
calão, com a humildade, que é a virtude simples e divina dos
santos.
Entre
esta modéstia e a humildade, eis a diferença:
O
homem falsamente modesto acredita que sua razão é superior à
verdade divina e independente dela, mas acredita ao mesmo tempo que
ela é inferior à do sr. Voltaire. Acredita ser inferior aos mais
rasteiros imbecis do século dezoito, mas zomba de Santa Teresa.
O
homem humilde despreza todas as mentiras, por mais que sejam
glorificadas por toda a terra, e se ajoelha perante toda verdade.
O
homem medíocre parece habitualmente modesto; não pode ser humilde,
ou deixará de ser medíocre.
O
homem medíocre adora Cícero, cegamente e sem restrições; não o
chama por seu nome, mas “o orador romano”. Cita de tempos em
tempos: ubinam gentium vivimus?
O
homem medíocre é o mais frio e o mais feroz inimigo do homem de
gênio.
Opõe-lhe
a força da inércia, resistência cruel; opõe-lhe seus hábitos
maquinais e invencíveis, a cidadela de seus velhos preconceitos, sua
indiferença impertinente, seu ceticismo maldoso, seu ódio profundo
que se assemelha à imparcialidade; opõe-lhe a arma das pessoas que
não têm coração, a dureza da estultice.
O
gênio conta com o entusiasmo; entrega-se a ele. O homem medíocre
não se entrega jamais. Não tem entusiasmo nem piedade: duas coisas
que vão sempre juntas.
Quando
o homem de gênio desanima e acha que está para morrer, o homem
medíocre fica satisfeito; alegra-se com essa agonia. Diz: bem que eu
tinha adivinhado, esse homem estava num mau caminho; tinha muito
confiança em si mesmo! Se o homem de gênio triunfa, o homem
medíocre, cheio de inveja e de ódio, opõe-lhe ao menos os
grande modelos clássicos, como
diz, os homens célebres do último século, e tratará de se
convencer que o futuro o vingará do presente.
O
homem medíocre é muito pior do que pensa, e do que pensam dele,
pois sua frieza oculta sua maldade. Jamais se arrebata. No fundo,
gostaria de eliminar as estirpes superiores: como não pode, vinga-se
achincalhando-as. Fala pequenas infâmias, que, por serem pequenas,
não parecem ser infames. Fere com alfinetes, e regozija-se quando o
sangue corre, ao passo que o assassino teme o sangue derramado. O
homem medíocre nunca tem medo. Sente o apoio da multidão dos que se
lhe assemelham.
O
homem medíocre é, na ordem literária, o que na ordem social
denomina-se um homem de boa sorte. Os sucessos fáceis são para ele.
Ignorando o que é essencial e captando o que é acidental em todas
as coisas, corre atrás das circunstâncias; segue ao sabor das
ocasiões; e quando é bem-sucedido, torna-se dez vez mais medíocre.
Julga-se, como julga os outros, pelo sucesso. Enquanto o homem
superior sente sua força interiormente, e a sente sobretudo se os
outros não a sentem, o homem medíocre pensa ser um tolo quando o
julgam tolo, e seu equilíbrio depende dos cumprimentos que recebe;
sua mediocridade aumenta na razão de sua importância.
Mas
enfim, perguntarão, por quê e como é bem-sucedido?
Sentado
em teu escritório, diante de um livro assinado por um nome
conhecido, a que o falatório público reclama sua atenção, nunca
te aconteceu fechá-lo com uma tristeza inquieta e dizer para ti
mesmo: – como estas páginas levaram o autor à reputação, em vez
de condená-lo ao esquecimento? Ou: como aquele outro nome, que
poderia figurar ao lado dos grandes nomes, é absolutamente
desconhecido dos homens? Porque os amigos raros, os raros amigos
deste em que penso neste momento murmuram timidamente seu nome entre
si, não ousando pronunciá-lo diante de todos, por não ter a sanção
de todos? A glória tem seus segredos, ou tem seus caprichos?
Eis
a resposta: a glória e o sucesso não se assemelham; a glória tem
segredos, o sucesso tem caprichos.
O
homem medíocre não luta: pode vencer inicialmente; sempre fracassa
depois.
O
homem superior luta primeiro e vence depois.
O
homem medíocre vence porque segue a corrente; o homem superior
triunfa porque vai contra a corrente.
O
procedimento do sucesso é caminhar com os outros; o procedimento da
glória é caminhar contra os outros.
Todo
homem que torna seu nome conhecido produz esse efeito, pois é o
representante de uma certa parte da espécie humana.
Eis
a solução de todos os enigmas.
As
raças superiores se fazem representar pelos grandes; as raças
inferiores se fazem representar pelos pequenos.
Ambas
têm seus deputados na assembléia universal.
Mas
umas dão a seus deputados o sucesso, as outras dão-lhes a glória.
Aqueles
que lisonjeiam os preconceitos, os hábitos de seus contemporâneos,
ganham impulso e chegam ao sucesso: são os homens de seu tempo.
Os
que recusam os preconceitos, os hábitos; os que respiram
antecipadamente os ares do século seguinte, impulsionam os outros, e
chegam à glória: são os homens da eternidade.
Eis
porque a coragem, que é inútil para o sucesso, é condição
absoluta para a glória. São grandes os que se impõem aos outros em
vez de suportá-los; que impõem a si mesmos em vez de suportar-se;
que sufocam com a mesma força seus próprios desânimos e as
resistências exteriores. O que denominamos grandeza é a irradiação
do poder.
O
homem medíocre que alcança o sucesso encarna os desejos atuais dos
outros homens.
O
homem superior que triunfa encarna os pressentimentos desconhecidos
da humanidade.
O
homem medíocre pode mostrar aos homens os aspectos conhecidos de
suas próprias almas.
O
homem superior revela aos homens os aspectos desconhecidos de suas
próprias almas.
O
homem superior desce até o fundo de nós mais profundamente do que
costumamos descer. Dá voz aos nossos pensamentos. É mais íntimo a
nós que nós mesmos.
Irrita-nos
e regozija-nos, como alguém que nos acordasse para acompanhá-lo a
ver o nascer do sol. Arrancando-nos de nossas casas para conduzir-nos
aos seus domínios, inquieta-nos, e ao mesmo tempo nos dá uma paz
superior.
O
homem medíocre, que nos deixa ali mesmo onde estamos, inspira-nos
uma tranqüilidade morta que é diferente da calma.
O
homem superior, incessantemente atormentado, dilacerado, pela
oposição entre o ideal e o real, sente melhor do que ninguém a
grandeza humana, e melhor do que ninguém a miséria humana. Sente-se
mais fortemente chamado ao esplendor ideal, que é a finalidade de
todos nós, e mais mortalmente deteriorado pela velha decadência de
nossa pobre natureza; e comunica-nos esse dois sentimentos que tem.
Ilumina em nós o amor do ser, e desperta em nós incansavelmente a
consciência do nosso
nada.
O
homem medíocre não sente nem a grandeza, nem a miséria, nem o Ser,
nem o nada. Não é nem deslumbrado, nem precipitado; fica no
penúltimo degrau da escada, incapaz de subir, excessivamente
preguiçoso para descer.
Em
seus juízos e em suas obras, substitui a realidade pela convenção,
aprova o que encaixa em seu repertório, condena o que escapa às
denominações, às categorias que conhece, receia o espanto e, não
se aproximando jamais do terrível mistério da vida, evita as
montanhas e os abismos pelos quais ela conduz seus amigos.
O
homem de gênio é superior àquilo que executa. Seu pensamento é
superior à sua obra.
O
homem medíocre é inferior àquilo que executa. Sua obra não é a
realização de um pensamento: é um trabalho feito de acordo com
determinadas regras.
O
homem de gênio sempre acha sua obra inacabada.
O
homem medíocre infla-se com a sua, cheio de si mesmo, cheio de nada,
cheio de vazio, cheio de vaidade. Vaidade! Esse odioso personagem
está por inteiro nestas duas palavras: frieza e vaidade!
In Hello, Ernest, L'Homme, Paris, Perrin et Cie, Libraires-Éditeus, 1894, p. 57-67.
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