terça-feira, 2 de novembro de 2010
Sou só - Léon Bloy
domingo, 29 de agosto de 2010
CNBB
Apelo a Todos os Brasileiros e Brasileiras
Nós, participantes do 2º Encontro das Comissões Diocesanas em Defesa da Vida (CDDVs), organizado pela Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB e realizado em S. André no dia 03 de julho de 2010,
considerando que, em abril de 2005, no IIº Relatório do Brasil sobre o Tratado de Direitos Civis e Políticos, apresentado ao Comitê de Direitos Humanos da ONU (nº 45) o atual governo comprometeu-se a legalizar o aborto,
considerando que, em agosto de 2005, o atual governo entregou ao Comitê da ONU para a Eliminação de todas as Formas de Descriminalização contra a Mulher (CEDAW) documento no qual reconhece o aborto como Direito Humano da Mulher,
considerando que, em setembro de 2005, através da Secretaria Especial de Polítíca das Mulheres, o atual governo apresentou ao Congresso um substitutivo do PL 1135/91, como resultado do trabalho da Comissão Tripartite, no qual é proposta a descriminalização do aborto até o nono mês de gravidez e por qualquer motivo, pois com a eliminação de todos os artigos do Código Penal, que o criminalizam, o aborto, em todos os casos, deixaria de ser crime,
considerando que, em setembro de 2006, no plano de governo do 2º mandato do atual Presidente, ele reafirma, embora com linguagem velada, o compromisso de legalizar o aborto,
considerando que, em setembro de 2007, no seu IIIº Congreso, o PT assumiu a descriminalização do aborto e o atendimento de todos os casos no serviço público como programa de partido, sendo o primeiro partido no Brasil a assumir este programa,
considerando que, em setembro de 2009, o PT puniu os dois deputados Luiz Bassuma e Henrique Afonso por serem contrários à legalização do aborto,
considerando como, com todas estas decisões a favor do aborto, o PT e o atual governo tornaram-se ativos colaboradores do Imperialismo Demográfico que está sendo imposto em nível mundial por Fundações Internacionais, as quais, sob o falacioso pretexto da defesa dos direitos reprodutivos e sexuais da mulher, e usando o falso rótulo de "aborto - problema de saúde pública", estão implantando o controle demográfico mundial como moderna estratégia do capitalismo internacional,
considerando que, em fevereiro de 2010, o IVº Congresso Nacional do PT manifestou apoio incondicional ao 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), decreto nª 7.037/09 de 21 de dezembro de 2009, assinado pelo atual Presidente e pela ministra da Casa Civil, no qual se reafirmou a descriminalização do aborto, dando assim continuidade e levando às últimas consequências esta política antinatalista de controle populacional, desumana, antisocial e contrária ao verdadeiro progresso do nosso País,
considerando que este mesmo Congresso aclamou a própria ministra da Casa Civil como candidata oficial do Partido dos Trabalhadores para a Presidência da República,
considerando enfim que, em junho de 2010, para impedir a investigação das origens do financiamento por parte de organizações internacionais para a legalização e a promoção do aborto no Brasil, o PT e as lideranças partidárias da base aliada boicotaram a criação da CPI do aborto que investigaria o assunto,
RECOMENDAMOS encarecidamente a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros e brasileiras, em consonância com o art. 5º da Constituição Federal, que defende a inviolabilidade da vida humana e, conforme o Pacto de S. José da Costa Rica, desde a concepção, independentemente de sua convicções ideológicas ou religiosas, que, nas próximas eleições, deem seu voto somente a candidatos ou candidatas e partidos contrários à descriminalizacão do aborto.
Convidamos, outrossim, a todos para lerem o documento "Votar Bem" aprovado pela 73ª Assembléia dos Bispos do Regional Sul 1 da CNBB, reunidos em Aparecida no dia 29 de junho de 2010 e verificarem as provas do que acima foi exposto no texto "A Contextualização da Defesa da Vida no Brasil", elaborado pelas Comissões em Defesa da Vida das Dioceses de Guarulhos e Taubaté, ligadas à Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB, ambos disponíveis no site desse mesmo Regional.
COMISSÃO em DEFESA da VIDA
do REGIONAL SUL 1 da CNBB
sábado, 24 de julho de 2010
CNB do B
Seg, 19 de Julho de 2010 13:02 cnbb
Com esta frase Jesus definiu bem a autonomia e o respeito, que deve haver entre a política (César) e a religião (Deus). Por isto a Igreja não se posiciona nem faz campanha a favor de nenhum partido ou candidato, mas faz parte da sua missão zelar para que o que é de “Deus” não seja manipulado ou usurpado por “César” e vice-versa.
Quando acontece essa usurpação ou manipulação é dever da Igreja intervir convidando a não votar em partido ou candidato que torne perigosa a liberdade religiosa e de consciência ou desrespeito à vida humana e aos valores da família, pois tudo isso é de Deus e não de César. Vice-versa extrapola da missão da Igreja querer dominar ou substituir-se ao estado, pois neste caso ela estaria usurpando o que é de César e não de Deus.
Já na campanha eleitoral de 1996, denunciei um candidato que ofendeu pública e comprovadamente a Igreja, pois esta atitude foi uma usurpação por parte de César daquilo que é de Deus, ou seja o respeito à liberdade religiosa.
Na atual conjuntura política o Partido dos Trabalhadores (PT) através de seu IIIº e IVº Congressos Nacionais (2007 e 2010 respectivamente), ratificando o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) através da punição dos deputados Luiz Bassuma e Henrique Afonso, por serem defensores da vida, se posicionou pública e abertamente a favor da legalização do aborto, contra os valores da família e contra a liberdade de consciência.
Na condição de Bispo Diocesano, como responsável pela defesa da fé, da moral e dos princípios fundamentais da lei natural que - por serem naturais procedem do próprio Deus e por isso atingem a todos os homens -, denunciamos e condenamos como contrárias às leis de Deus todas as formas de atentado contra a vida, dom de Deus,como o suicídio, o homicídio assim como o aborto pelo qual, criminosa e covardemente, tira-se a vida de um ser humano, completamente incapaz de se defender. A liberação do aborto que vem sendo discutida e aprovada por alguns políticos não pode ser aceita por quem se diz cristão ou católico. Já afirmamos muitas vezes e agora repetimos: não temos partido político, mas não podemos deixar de condenar a legalização do aborto. (confira-se Ex. 20,13; MT 5,21).
Isto posto, recomendamos a todos verdadeiros cristãos e verdadeiros católicos a que não dêem seu voto à Senhora Dilma Rousseff e demais candidatos que aprovam tais “liberações”, independentemente do partido a que pertençam.
Evangelizar é nossa responsabilidade, o que implica anunciar a verdade e denunciar o erro, procurando, dentro desses princípios, o melhor para o Brasil e nossos irmãos brasileiros e não é contrariando o Evangelho que podemos contar com as bênçãos de Deus e proteção de nossa Mãe e Padroeira, a Imaculada Conceição.
Dom Luiz Gonzaga Bergonzini
sábado, 17 de julho de 2010
Jean Borella: A Crise do Simbolismo Religioso - Introdução
INTRODUÇÃO GERAL
OBJETIVO E PLANO DO LIVRO
I – Há mais de trezentos anos, certo pensamento filosófico, no afã de realizar a missão de que, no seu próprio entender, foi investido pela ciência, guerreia contra a alma religiosa da humanidade. O lugar próprio e objeto desse combate é o campo do simbolismo sagrado, pois a religião só pode ser compreendida através das formas (sensíveis e intelectuais) que a exprimem e fazem existir culturalmente. Desencadeando esse conflito, a filosofia queria única e simplesmente purificar a razão humana, quer dizer, restituí-la em seu estado natural despojando-a de todas as impurezas acumuladas pela ignorância e pela superstição. Todavia, à medida que se desenvolvia essa vasta crítica da razão religiosa, impunha-se a obrigação, não somente de combatê-la, mas também de explicar seu surgimento na história humana. Erguendo-se contra a religião, a razão não tardaria a perceber que seu inimigo residia em si mesma, no segredo da consciência humana. Ela tentou extirpá-lo, tentativa que, em trezentos anos, conduziu a crítica filosófica à rejeição até da razão pura, destituída de sua pretensão hegemônica, e portanto a uma espécie de suicídio especulativo de que o pós-estruturalismo dá hoje espetáculo: a alma religiosa morrendo arrasta consigo a alma racional.
Uma vez que essa autodestruição é na verdade impossível (nem Deus, nem a inteligência podem “morrer”), devemos questionar esses três séculos de filosofia europeia[1], e buscar, através da imensa rede de proteções antirreligiosas com que a crítica racionalista cercou-se, a orientação natural da inteligência para o sagrado. E, como o sagrado existe para nós sempre sob a forma de símbolos, salvar a inteligência desses enganos é ordená-la ao simbolismo, fazer com que converta-se ao símbolo é reconduzir o logos para o mythos. Mas a inteligência obedece unicamente a si mesma, quer dizer à evidência do verdadeiro. Seria necessário, para operar essa conversão, provar racionalmente a verdade dos símbolos religiosos? Ora, esta é uma tarefa impossível e aliás contraditória: se a inteligência pudesse demonstrar a verdade dos símbolos, ela não teria nenhuma necessidade de sua mediação para atingir o Transcendente que neles se presentifica e se dá a conhecer. Em outras palavras, a fé seria inútil e cederia seu lugar à razão. Isso nos dá uma ideia da importância do nosso assunto, bem como da amplitude e abundância dos debates que ele suscitou. Foi entretanto essa via direta (e positiva) que seguiu a mais vasta tentativa filosófica dos tempos modernos, o hegelianismo: reconciliar o saber e a fé, o espírito e as formas culturais de que se revestiu, pela redução de sua contingência à necessidade lógica de seu surgimento, constituindo assim uma pseudognose racionalista e totalitária. O preço pago foi o da própria Transcendência, que desapareceu e mergulhou na indefinitude de suas formas imanentes, o que desembocou no necessitarismo mais sistemático e horizontal possível.
II – Era preciso então recusar a via direta, e certamente jamais pensamos em provar dedutivamente a verdade do simbolismo religioso. Ao contrário, acreditamos que é preciso manter um hiato, humanamente intransponível, entre a inteligência e os símbolos (análogo ao que separa o sujeito cognoscente dos objetos conhecidos, naturalmente ou por revelação), pois é justamente aceitando essa distância que o intelecto realiza a verdade de sua natureza: a inteligência é relação e não acede à sua identidade senão por meio de sua ordenação consentida à alteridade do ser; ela somente “integra” aquilo a que se submete. Levar a inteligência filosófica a consentir especulativamente nessa submissão, eis o que designamos como sua conversão ao símbolo, e tal era a tarefa que se nos impunha. Por isso, a única solução era o que denominamos de via indireta ou negativa.
Esta via consiste em mostrar como a revolta contra o símbolo, se levada até o fim, conduz a razão a sua própria destruição. Ora, evidentemente a razão não tem o poder de aniquilar a si mesma: quem racionalmente nega a razão afirma-a. Só resta então abrir-se para a inteligência do símbolo a fim de receber sua luz. Nossa démarche, pode-se ver, assemelha-se à de Descartes nas Meditações metafísicas: através de uma dubitatio universalis (o exercício de uma dúvida universal), estabelecer a necessidade de uma conversão intelectual ao simbolismo. Também se pode ver as diferenças. Diferença de objeto: não é mais com suas representações ideais que a consciência deve procurar romper (a fim de constatar a resistência que sua própria existência consciente oferece a essa dúvida), é com suas representações religiosas. Diferença de terreno: o lugar para o exercício da dubitatio não é mais o do conhecimento, mas o da cultura, de acordo com a natureza da crise filosófica de nosso tempo, que não é mais, como em Descartes, a de nossa situação cognitiva (ligada ao surgimento da ciência no século XVII), mas a de nossas raízes culturais (ligada aos transtornos de nossa maneira de viver através das técnicas e pelo desmoronamento das sociedades no século XX). Diferença de método, enfim: é inútil proceder “artificialmente”, através de meditações pouco “naturais”, como diz Descartes; basta acompanhar o trabalho de desconstrução do símbolo tal como o realizou a história do pensamento europeu ao longo de mais de trezentos anos e que hoje parece estar completamente acabado.
Ora, todo trabalho de desconstrução revela os elementos e as articulações do que foi desconstruído, as diversas fases de sua execução correspondendo necessariamente aos diversos elementos da entidade desconstruída, e sua sucessão sendo determinada pelas relações que ordenam-nos uns aos outros. Tal é a simplíssima ideia que presidiu a constituição deste livro: a crise do simbolismo é determinada pela estrutura mesma do signo simbólico e só pode desenvolver-se de acordo com a lógica de suas articulações. Devemos agora recordar essa estrutura e essa lógica.
III – Mostramos, em História e teoria do símbolo, que o aparato simbólico é constituído pela relação viva que une o significante, o significado e o referente particular – o que é chamado “triângulo semântico” – sob a jurisdição de um quarto elemento que denominamos referente metafísico (ou transcendente), no qual os três primeiros encontram seu princípio de unidade; o significante (ou “simbolizante”) é geralmente de natureza sensível; o significado, de natureza mental, identifica-se à ideia que o significante evoca em nosso espírito, naturalmente ou culturalmente; o referente particular, é o objeto não visível (acidentalmente ou essencialmente) que o símbolo, em função de seu significado, pode designar (a designação do referente, ou determinação do significado, é a tarefa própria da hermenêutica, ou ciência da interpretação); quanto ao referente metafísico, sempre esquecido e entretanto fundamental, pois é ele que faz do signo um verdadeiro símbolo, é o arquétipo – ou o princípio metacósmico – do qual o significante, o significado e o referente particular são manifestações distintas. Vejamos, por exemplo, o símbolo da água; o significante, é o elemento líquido, a coisa que designamos por esse nome; o significado, é a ideia, evocada pela imagem da água, de um “material” que pode tomar todas as formas e não manter nenhuma; o referente particular, o que o signo designa, relaciona-se, conforme o caso, à formação do mundo (“o Espírito de Deus pairava sobre as águas”), a regeneração da alma (a água batismal), ou outros objetos; o referente metafísico, enfim, é a Possibilidade universal, o significante “água” é a imagem corporal, o significado “substância protoplásmica” é a forma mental, os referentes “águas primordiais” ou “água batismal” são modos de manifestação, cosmogônica uma, ritual a outra[2]. Cada um desses elementos encontra então no referente metafísico seu princípio único e unificante. Disto resulta que, do ponto de vista desse referente supremo, não há diferença radical entre simbolizante, significado e referente, que são modos de manifestação do referente-arquétipo, e portanto que o que é simbolizado pode por sua vez tornar-se simbolizante: as águas primordiais ou purificadoras são símbolos, cósmicos ou rituais, da Possibilidade infinita, assim como a substância protoplásmica e sempre virgem é seu símbolo mental ou conceitual. A única distinção radical situa-se entre o Incriado, sempre simbolizado, nunca simbolizante[3], e os múltiplos graus do criado, cada um dos quais, salvo o mais baixo, é simbolizado pelo grau inferior e simbolizante do grau superior: meio de presença do superior no inferior, o símbolo simboliza portanto por presentificação e não por representação; este é seu ato específico, seu modo próprio de significação.
Mas o símbolo não opera somente, do ponto de vista do referente metafísico, uma “distinção-unificação” vertical de diversos graus de realidade; opera também, e em consequência, uma “diferenciação-mediação” horizontal no plano da existência humana. Enquanto signo, com efeito, interpõe sua mediação entre o homem e o mundo, despertando-nos à consciência diferencial do sujeito e do objeto, e permite-nos ao mesmo tempo entrar em relação com as coisas. Em suma, a triangulação significante-significado-referente é uma consequência, no interior do próprio símbolo, da triangulação signo-homem-mundo (ou cultura-consciência-natureza, ou revelação-alma-criação) que estrutura o campo da existência humana.
Essas duas maneiras de operar, normalmente indissociáveis[4], podem entretanto conduzir a duas concepções antagonistas do signo simbólico. Considerado em sua integralidade, de acordo com a visão das sociedades tradicionais, o símbolo é definido sinteticamente como o raio semântico que, atravessando todos os graus de ser, une o significante corporal ao referente metafísico[5], o que se traduz analiticamente, quanto à sua realidade de signo, sob a forma do triângulo semântico: raio e triângulo semânticos definem respectivamente o aspecto “símbolo” e o aspecto “signo” do signo simbólico. Mas, para uma civilização racionalista e cientista, tal referente metafísico simplesmente não existe – a menos que (é a tese de Kant) sua transcendência impeça justamente toda presentificação cósmica. Este ponto de vista negativo é evidentemente o da crítica filosófica do simbolismo, é mesmo seu axioma primeiro. Vemos assim que jamais haveria crise do simbolismo religioso, se o signo simbólico não comportasse essa dimensão transcendente do raio semântico, pois é ela que suscitou a reação racionalista e naturalista; mas, sem ela, jamais haveria nem simbolismo, nem religião. A obstinação em dar uma definição puramente lógica e formal do símbolo, aplicando-a a todas as entidades a que se atribui, às vezes erroneamente, essa denominação (é o caso mesmo dos tratados escolásticos), impede totalmente a compreensão do questionamento das formas do sagrado que ocorre entretanto diante dos nossos olhos. Saibamos de uma vez por todas: ao falar do símbolo, a Tradição e os modernos não falam da mesma coisa. Todas as dificuldades ou bizarrices da simbologia decorrem disto. E a redução do símbolo ao triângulo semântico, e até ao binômio significante-significado, só é possível a partir da negação explícita de sua dimensão metafísica. Descobrimos assim que simbolismo e metafísica estão intimamente associados; tal é a conclusão maior de nosso livro: é necessariamente com um mesmo movimento que a banalidade do racionalismo aplastra esse relevo do espírito que é a visão metafísica das coisas e essa misteriosa dimensão de interioridade que habita as formas simbólicas.
IV – Devemos agora retornar a um ponto que somente mencionamos: trata-se da hermenêutica. É ela que faz “funcionar” o símbolo, é ela que, como dissemos, assinala ao símbolo seu referente. Ora, a hermenêutica só pode fazer os símbolos falarem em sua própria linguagem, a da inteligência racional, e portanto, segundo a concepção que o entendimento faz do real. Toda hermenêutica é função de uma certa filosofia, explícita ou implícita, do ser e dos seres, e depende do que denominamos uma ontocosmologia de referência, que condicionará a determinação do referente. Enfim, a hermenêutica, que é a efetuação do significado, assinalará um referente a um significante sobre a base daquilo que lhe pareça cosmologicamente e ontologicamente possível. Assim, para que o significante “água” possa simbolizar a “matéria prima” (nível cosmológico), ou as “possibilidades criadoras” (nível ontológico), duas condições são requeridas: que essas noções correspondam a realidades objetivas, por um lado; e que a água possa ser tomada, em sua substância mesma, como a manifestação ou presentificação física da materia prima ou da potencialidade criadora, por outro lado. Dito de outra maneira: é preciso que o hermeneuta adira à doutrina da multiplicidade hierárquica dos graus de realidade (ou ontologia escalar), e à de sua unidade essencial (ou teoria da correspondência universal). O que, afinal de contas, equivale a afirmar a função teofânica do cosmos: o céu e a terra não revelam Deus apenas sob a forma de uma Causa impossível de conhecer, eles “proclamam Sua glória”. A criação inteira, enquanto “Deus visível”, é hermeneuta do Deus invisível, como o simbolismo religioso é hermeneuta da teofania cósmica[6]
É precisamente isto o que o surgimento da ciência galileana, no início do século XVII, parece condenar definitivamente: a revolução cosmológica que ela opera arruína qualquer possibilidade de teofania natural. Ela desencadeia assim na Europa a crise do simbolismo religioso, e é portanto por seu estudo que devemos começar.
Certamente não pretendemos que Galileu se tenha proposto elaborar uma crítica do simbolismo, embora tenha abordado a questão por várias vezes. Mas, ainda que indiretamente, a nova ciência não poderia deixar de ter seus efeitos sobre as formas do sagrado. Ela constitui o primeiro momento da crise do simbolismo por ter destruído seu fundamento ontocosmológico. E é estudada aqui somente sob esse aspecto. Ora, se admitirmos que o ato final do simbolismo realiza-se na determinação do referente, compreenderemos também que o momento inicial ou inaugural da crise pode ser definido como a suspensão da referência: sob a influência da nova física, os símbolos sagrados perdem tanto seu referente metafísico, do qual deixam de ser a presentificação, quanto seus referentes particulares, cuja existência objetiva é negada. Vê-se que o primeiro momento da crise concerne necessariamente ao último polo do triângulo simbólico. Por isso nossa primeira parte bem poderia intitular-se: A negação do referente ou a destruição do mitocosmo.
Em suma, o efeito da revolução galileana sobre o simbolismo religioso foi transformar o signo simbólico em “substituto fictício”, foi conferir à palavra símbolo o sentido único e degradado de “entidade não real”. É simbólico aquilo que visa explicitamente exercer em aparência as funções do real: o signo aqui de certa maneira absorveu o símbolo; ou ainda, o símbolo, amputado do raio semântico, fica reduzido à horizontalidade de sua estrutura triangular. Deve-se notar ainda que o referente particular torna-se ele mesmo problemático, pois a relação que mantém com o significante perdeu seu fundamento objetivo. Essa relação, que é propriamente o que denominamos significado do símbolo, privada de tal fundamento, reduz-se então a uma produção subjetiva da consciência religiosa[7]. O que é o referente “criação do mundo” ou “purificação da alma” além de sua designação como símbolo? Nada mais, responde a filosofia moderna, do que uma superstição ou uma hipótese jamais verificável. E o que é o significante “água” afora seu uso simbólico? Nada mais, responde a nova física, do que um elemento corporal. É o espírito humano, e somente ele, ou melhor sua imaginação, que une um à outra; e é portanto no funcionamento desse espírito que reside a explicação da produção dos símbolos.
Como se pode ver, a crise do simbolismo toma então expressamente a forma de uma crítica da religião. E essa crítica incide necessariamente sobre o segundo polo do triângulo do símbolo, ou seja sobre o significado cuja gênese situa-se no fundo de uma consciência religiosa desconhecida de si mesma. Este é o lugar próprio e central da crítica do signo simbólico, e portanto é também o momento mais importante na crise do simbolismo. À hermenêutica tradicional dos símbolos sagrados, a razão filosófica opõe uma hermenêutica desmitificante da consciência religiosa: o significado dos símbolos não é o que se pensava porque a consciência religiosa não sabe o que diz. Por isso nossa segunda parte bem se pode intitular: A subversão do significado ou a neutralização da consciência religiosa.
Pensava-se assim ter curado a alma para sempre da loucura religiosa. Entretanto, concentrando todos os esforços de sua crítica na subjetividade de uma consciência alienada, a filosofia esqueceu-se dos próprios símbolos. Ela talvez explicasse o processo de simbolização (ao menos a seus próprios olhos), mas, certamente, deixava inexplicados os símbolos enquanto tais, em sua contingência e variedade. É entretanto neles, é o que diz essa crítica, que o homem descobre a verdade sobre si mesmo. Como não acabariam eles por monopolizar a atenção do pensamento moderno? Compreender de que inconsciência nossa consciência é feita, e como, enganando-se a si mesma, produz sem perceber toda a simbólica religiosa, desperta de início o mais vivo interesse, e mesmo um reconhecimento admirativo pelos sutis hermeneutas que souberam desmontar o estratagema. Chega entretanto o momento em que, esgotado esse gênero de interesse, a questão se desloca: que a consciência engane-se a si mesma e se oculte, muito bem; mas por que sob tal disfarce e não sob outro? É então o primeiro polo do triângulo semântico, o significante enquanto tal, em sua singularidade, que vem enfim ao primeiro plano, depois que o referente e o significado, definitivamente neutralizados, deixaram de ocupar o primeiro plano da cena crítica. Com isto somos conduzidos à terceira fase da crise do simbolismo; daí o título de nossa terceira parte: O império do significante ou o esfacelamento do símbolo, consagrada essencialmente aos estruturalismos contemporâneos. Podemos avaliar a diferença no tratamento que essas três críticas infligem ao símbolo: se a primeira nega o referente, se a segunda subverte o significado, a terceira exalta o significante, confiando-lhe aliás uma carga esmagadora: agora são as unidades significantes que, é o que se pretende, organizam o campo cultural e que portanto estruturam tanto a consciência quanto a razão. O logos, destituído de sua realeza, torna-se um simples efeito do funcionamento da ordem dos signos.
Tal é a conclusão geral a que chega, segundo seu próprio testemunho, a filosofia contemporânea, e que põe a questão do simbolismo sagrado no cerne dos debates especulativos do Ocidente. É também essa conclusão que nos conduz ao princípio metafísico de toda démarche intelectual, e que compõe o título de nossa quarta parte: O princípio semântico ou a evidência primeira do logos. Era com efeito necessário que o logos fosse até o limite de sua autopurificação para que experimentasse seu caráter impossivelmente suicida (a exigência de sentido é absoluta) e reconhecesse a indissolubilidade de facto de sua relação ao símbolo. É a isto que tende nossa interpretação do célebre paradoxo de Epimênides, ao qual atribuímos o valor de uma prova iniciática para entrar na via filosófica. Fica assim estabelecida, per absurdum, a essencial conjunção do logos e do mythos, e portanto reconhecido, em sua necessidade, o fato do simbolismo religioso: ninguém pode extirpar o sagrado da alma humana sem destruí-la. Quanto aos símbolos, não se pode ir mais longe: demonstrar racionalmente sua necessidade lógica equivaleria a negar o mythos, fundamentando-o dedutivamente sobre o logos e portanto reduzindo-o. Mas quanto ao intelecto, é possível transformar em uma ordenação legítima a relação de fato que o une ao símbolo. Meditando sobre o argumento ontológico, na formulação que lhe dá Santo Anselmo, a inteligência, defrontando-se com a suprema tarefa de pensar o Infinito, descobre sua própria natureza teofânica.
Assim alcançamos nossa quinta e última parte, onde opera-se enfim A conversão da inteligência ao símbolo, que é, em verdade, o princípio hermenêutico fundamental. Se com certeza a exigência de sentido, constitutiva da inteligência, prevalece absolutamente, ela entretanto só pode realizar-se na renúncia (aparente) à sua própria luz e em sua submissão à revelação do símbolo. Se meditarmos no caminho percorrido veremos que face às exigências de uma autêntica filosofia não é possível haver outro. O que significa também que, nessa conversão, resolve-se o conflito da razão e da fé, da universalidade do logos perante a contingência das culturas religiosas: aqui, o sentido une-se ao ser, a inteligência informal une-se às formas sagradas, morre nelas e ressuscita transfigurando-as. Ao impossível suicídio especulativo de uma razão ilusoriamente desmitificada responde o sacrifício de um intelecto que só encontra sua realização na mediação crucificante do símbolo, como nos ensina, exemplarmente, o mistério da Noite pascal.
Na festa de Santo Ireneu de Lion,
defensor da gnose no verdadeiro sentido,
28 de junho de 1989,
Jean Borella
[1] Nem toda a filosofia europeia é antirreligiosa. Mas toda a filosofia moderna – a que se quer propriamente filosófica e moderna – o é.
[2] Pode-se aplicar esta análise a outros símbolos, à cruz por exemplo: o significante, é a intersecção ortogonal de dois segmentos de reta; o sentido, é a ideia de conjunção entre dois elementos ou duas ordens diferentes; o referente particular, pode ser o sacrifício de Cristo, a Santíssima Trindade, o encontro do raio criador com um plano de existência, ou do Céu e da Terra, ou do divino e do humano; o referente metafísico, é a implicação recíproca da Transcendência absoluta e da Imanência total.
[3] Existe entretanto um protótipo incriado do simbolismo: o Filho é símbolo do Pai no espelho do Espírito. Nesse sentido, o Verbo, lugar divino dos arquétipos, síntese de todas as possibilidades de criação, identifica-se ao Ser como princípio dos existentes e deve ser visto como o Simbolizante supremo de que o Espírito Santo é o supremo Hermeneuta, e o Pai o supremo Referente. Reencontramos assim, transposto em modo principial, o triângulo semântico. Quanto ao referente metafísico, que evidentemente não é um referente no sentido próprio do termo, e que constitui a identidade dos polos do triângulo, ele corresponde à Essência divina ou Deidade.
[4] A primeira corresponde à essência do símbolo, a segunda à sua existência como entidade significante.
[5] Considerado de cima para baixo, a partir do Princípio, o raio semântico corresponde ao raio criador.
[6] O que não implica em nenhum panteísmo. O mundo só proclama de Deus o que d'Ele é enunciável. Sua glória (ou irradiação da Sua palavra criadora), não sua Essência absoluta. O que não é pouco: sabemos assim que Deus tem a beleza da rosa, a força do leão, a pureza da água, o esplendor da luz, a majestade de uma montanha, a imensidão do oceano, a doçura do leite, a nobreza da águia, a sabedoria do elefante, a realeza do sol, a profundeza da noite, a perfeição do céu, o rigor da morte, a alegria da vida, a centralidade do homem, e assim por diante; mas tudo isto subsiste n'Ele em um modo supereminente e inefável.
[7] A palavra “consciência” só adquire correntemente o sentido de “conhecimento de si e dos estados do sujeito” em torno da metade do século XVIII. Parece ter sido Descartes, um século antes, quem inaugurou (em francês) esse uso: “meu pensamento ou minha consciência” (Carta de 19.1.1642); em latim, cf. Réponses aux IIIe objections, édition Alquié, p. 605. Malebranche segue seu exemplo: Recherche de la vérité, III, II, VII, 4.
Dercy fala sobre teatro
Machado de Assis: Idéias sobre o Teatro
I
A arte dramática não é ainda entre nós um culto; as vocações definem-se e educam-se como um resultado acidental. As perspectivas do belo não são ainda o ímã da cena; o fundo de uma posição importante ou de um emprego suave, é que para lá impele as tendências balbuciantes. As exceções neste caso são tão raras, tão isoladas que não constituem um protesto contra a verdade absoluta da asserção.
Não sendo, pois, a arte um culto, a idéia desapareceu do teatro e ele reduziu-se ao simples foro de uma secretaria de Estado. Desceu para lá o oficial com todos os seus atavios: a pêndula marcou a hora do trabalho, e o talento prendeu-se no monótono emprego de copiar as formas comuns, cediças e fatigantes de um aviso sobre a regularidade da limpeza púbica.
Ora, a espontaneidade pára onde o oficial começa; os talentos, em vez de se expandirem no largo das concepções infinitas, limitaram-se à estrada indicada pelo resultado real e representativo das suas fadigas de trinta dias. Prometeu atou-se ao Cáucaso.
Daqui uma porção de páginas perdidas. As vocações viciosas e simpáticas sufocaram debaixo da atmosfera de gelo, que parece pesar, como um sudário de morto sobre a tenda da arte. Daqui o pouco ouro que havia. lá vai quase que despercebido no meio da terra que preenche a âmbula sagrada.
Serão desconhecidas as causas dessa prostituição imoral? Não é difícil assinalar a primeira, e talvez a única que maiores efeitos tem produzido. Entre nós não há iniciativa.
Não há iniciativa, isto é, não há mão poderosa que abra uma direção aos espíritos; há terreno, não há semente; há rebanho, não há pastor; há planetas, mas não há outro sistema.
A arte para nós foi sempre órfã; adornou-se nos esforços, impossíveis quase, de alguns caracteres de ferro, mas, caminho certo, estrela ou alvo, nunca os teve.
Assim, basta a boa vontade de um exame ligeiro sobre a nossa situação artística para reconhecer que estamos na infância da moral; e que ainda tateamos para darmos com a porta da adolescência que parece escondida nas trevas do futuro.
A iniciativa em arte dramática não se limita ao estreito círculo do tablado — vai além da rampa, vai ao povo. As platéias estão aqui perfeitamente educadas? A resposta é negativa.
Uma platéia avançada, com um tablado balbuciante e errado, é um anacronismo, uma impossibilidade. Há uma interna relação entre uma e outro. Sófocles hoje faria rir ou enjoaria as massas, e as platéias gregas pateariam de boa vontade uma cena de Dumas ou Barrière.
A iniciativa, pois, deve ter uma mira única: a educação. Demonstrar aos iniciados as verdades e as concepções da arte; e conduzir os espíritos flutuantes e contraídos da platéia à esfera dessas concepções e dessas verdades. Desta harmonia recíproca de direções acontece que a platéia e o talento nunca se acham arredados no caminho da civilização.
Aqui há um completo deslocamento: a arte divorciou-se do público. Há entre a rampa e a platéia um vácuo imenso de que nem um nem outra se apercebe.
A platéia ainda dominada pela impressão de uma atmosfera, dissipada hoje no verdadeiro mundo da arte, — não pode sentir claramente as condições vitais de uma nova esfera que parece encerrar o espírito moderno. Ora, à arte tocava a exploração dos novos mares que se lhe apresentam no horizonte, assim como o abrir gradual, mas urgente, dos olhos do público. Uma iniciativa firme e fecunda e
o elixir necessário à situação; um dedo que, grupando platéia e tablado, folheie a ambos a grande bíblia da arte moderna com toda as relações sociais, é do que precisamos na atualidade.
Hoje não há mais pretensões, creio eu, de metodizar uma luta de escola, e estabelecer a concorrência de dois princípios. É claro ou é simples que a arte não pode aberrar das condições atuais da sociedade para perder-se no mundo labiríntico das abstrações. O teatro é para o povo o que o Coro era para o antigo teatro grego; uma iniciativa de moral e civilização. Ora, não se pode moralizar fatos de pura abstração em proveito das sociedades; a arte não deve desvairarse no doido infinito das concepções ideais, mas identificar-se com o fundo das massas; copiar, acompanhar o povo em seus diversos movimentos, nos vários modos da sua atividade.
Copiar a civilização existente e adicionar-lhe uma partícula, é uma das forças mais produtivas com que conta a sociedade em sua marcha de progresso ascendente.
Assim os desvios de uma sociedade de transição lá vão passando e à arte moderna toca corrigi-la de todo. Querer levantar luta entre um princípio falso, decaído, e uma idéia verdadeira que se levanta, é encerrar nas grades de uma gaiola as verdades puras que se evidenciavam no cérebro de Salomão de Caus.
Estas apreensões são tomadas de alto e constituem as bordas da cratera que é preciso entrar. Desçamos ate as aplicações locais.
A arena da arte dramática entre nós é tão limitada, que é difícil fazer aplicações sem parecer assinalar fatos, ou ferir individualidades. De resto, é de sobre individualidades e fatos que irradiam os vícios e as virtudes, e sobre eles assenta sempre a análise. Todas as suscetibilidades, pois, são inconseqüentes, — a menos que o erro ou a maledicência modelem estas ligeiras apreciações.
A reforma da arte dramática estendeu-se até nós e pareceu dominar definitivamente uma fração da sociedade.
Mas isso é o resultado de um esforço isolado operando por um grupo de homens. Não tem ação larga sobre a sociedade. Esse esforço tem-se mantido e produzido os mais belos efeitos; inoculou em algumas artérias o sangue das novas idéias, mas não o pôde ainda fazer relativamente a todo o corpo social.
Não há aqui iniciativa direta e relacionada com todos os outros grupos e filhos da arte.
A sua ação sobre o povo limita-se a um círculo tão pequeno que dificilmente faria resvalar os novos dogmas em todas as direções sociais.
Fora dessa manifestação singular e isolada, — há algumas vocações que de bom grado acompanhariam o movimento artístico de sorte a tomarem uma direção mais de acordo com as opiniões do século. Mas são ainda vocações isoladas, manifestações impotentes. Tudo é abafado e se perde na grande massa.
Assinaladas e postas de parte certas crenças ainda cheias de fé, esse amor ainda santificado, o que resta? Os mercadores entraram no templo e lá foram pendurar as suas alfaias de fancaria. São os jesuítas da arte; os jesuítas expuseram o Cristo por tabuleta e curvaram-se sobre o balcão para absorver as fortunas. Os novos invasores fizeram o mesmo, a arte é a inscrição com que parecem absorver fortunas e seiva.
A arte dramática tornou-se definitivamente uma carreira pública.
Dirigiram mal as tendências e o povo. Diante das vocações colocaram os horizontes de um futuro inglório, e fizeram crer às turbas que o teatro foi feito para passatempo. Aquelas e este tomaram caminho errado; e divorciaram-se na estrada da civilização.
Deste mundo sem iniciativa nasceram o anacronismo, as anomalias, as contradições grotescas, as mascaradas, o marasmo. A musa do tablado doidejou com os vestidos de arlequim, — no meio das apupadas de uma multidão ébria.
É um fiat de reforma que precisa este caos.
Há mister de mão hábil que ponha em ação, com proveito para a arte e para o país, as subvenções improdutivas, empregadas na aquisição de individualidades parasitas.
Esta necessidade palpitante não entra na vista dos nossos governos. Limitam-se ao apoio material das subvenções e deixam entregue o teatro a mãos ou profanas ou maléficas.
O desleixo, as lutas internas, são os resultados lamentáveis desses desvios da arte. Levantar um paradeiro a essa corrente despenhada de desvarios, é a obra dos governos e das iniciativas verdadeiramente dedicadas.
II
Se o teatro como tablado degenerou entre nós, como literatura é uma fantasia do espírito.
Não se argumente com meia dúzia de tentativas, que constituem apenas uma exceção; o poeta dramático não é ainda aqui um sacerdote, mas um crente de momento que tirou simplesmente o chapéu ao passar pela porta do templo. Orou e foi caminho.
O teatro tornou-se uma escola de aclimatação intelectual para que se transplantaram as concepções de estranhas atmosferas, de céus remotos. A missão nacional, renegou-a ele em seu caminhar na civilização; não tem cunho local; reflete as sociedades estranhas, vai ao impulso de revoluções alheias à sociedade que representa, presbita da arte que não enxerga o que se move debaixo das mãos.
Será aridez de inteligência? não o creio. É fecunda de talentos a sociedade atual. Será falta de ânimo? talvez; mas será essencialmente falta de emulação. Essa é a causa legítima da ausência do poeta dramático; essa não outra.
Falta de emulação? Donde vem ela? Das platéias?
Das platéias. Mas é preciso entender: das platéias, porque elas não têm, como disse, uma sedução real e conseqüente.
Já assinalei a ausência de iniciativa e a desordem que esteriliza e mata tanto elemento aproveitável que a arte em caos encerra. A essa falta de um raio condutor se prende ainda a deficiência de poeta dramáticos.
Uma educação viciosa constitui o paladar das platéias. Fizeram ar em face das multidões uma procissão de manjares esquisitos de um sabor estranho, no festim da arte, os naturalizaram sem cuidar dos elementos que fermentavam em torno de nossa sociedade, e que só esperavam uma mão poderosa para tomarem uma forma e uma direção.
As turbas não são o mármore que cede somente ao trescalar laborioso do escopro, são a argamassa que se amolda à pressão dos dedos. Era fácil dar-lhes uma fisionomia; deram-lha. Os olhos foram rasgados para verem segundo as conveniências singulares de uma autocracia absoluta.
Conseguiram fazê-lo.
Habituaram a platéia nos boulevards elas esqueceram as distâncias e gravitam em um círculo vicioso. Esqueceram-se de si mesmas; e os czares da arte lisonjeiam-lhes a ilusão com esse manjar exclusivo que deitam à mesa pública.
Podiam dar a mão aos talentos que se grupam nos derradeiros degraus a espera de um chamado.
Nada!
As tentativas nascem pelo esforço sobre-humano de alguma inteligência onipotente, — mas passam depois de assinalar um sacrifício, mais nada!
E, de feito, não é mau este proceder. É uma mina o estrangeiro, há sempre que tomar à mão; e as inteligências não são máquinas dispostas às vontades e conveniências especulativas.
Daqui o nascimento de uma entidade: o tradutor dramático, espécie de criado de servir que passa, de uma sala a outra, os pratos de uma cozinha estranha.
Ainda mais essa!
Dessa deficiência de poetas dramáticos, que de coisas resultam! que deslocamentos!
Vejamos.
Pelo lado da arte o teatro deixa de ser uma reprodução da vida social na esfera de sua localidade. A crítica resolverá debalde o escalpelo nesse ventre sem entranhas próprias, pode ir procurar o estudo do povo em outra face; no teatro não encontrará o cunho nacional mas uma galeria bastarda, um grupo furta-cor, uma associação de nacionalidades.
A civilização perde assim a unidade. A arte, destinada a caminhar na vanguarda do povo como uma preceptora, — vai copiar as sociedades ultrafronteiras.
Tarefa estéril!
Não pára aqui. Consideremos o teatro como um canal de iniciação. O jornal e a tribuna são os outros dois meios de proclamação e educação pública. Quando se procura iniciar uma verdade busca-se um desses respiradouros e lança-se o pomo às multidões ignorantes. No país em que o jornal, a tribuna e o teatro tiverem um desenvolvimento conveniente — as caligens cairão aos olhos das massas; morrerá o privilégio, obra de noite e da sombra; e as castas superiores da sociedade ou rasgarão os seus pergaminhos ou cairão abraçadas com eles, como em sudários.
É assim, sempre assim; a palavra escrita na imprensa, a palavra falada na tribuna, ou a palavra dramatizada no teatro, produziu sempre uma transformação. É o grande fiat de todos os tempos.
Há porém uma diferença: na imprensa e na tribuna a verdade que se quer proclamar é discutida, analisada, e torcida nos cálculos da lógica; no teatro há um processo mais simples e mais ampliado; a verdade parece nua, sem demonstração, sem análise.
Diante da imprensa e da tribuna as idéias abalroam-se, ferem-se, e lutam para acordar-se; em face do teatro o homem vê, sente, palpa; está diante de uma sociedade viva, que se move, que se levanta, que fala, e de cujo composto se deduz a verdade, que as massas colhem por meio de iniciação. De um lado a narração falada ou cifrada, de outro a narração estampada, a sociedade reproduzida no espelho fotográfico de forma dramática.
É quase capital a diferença.
Não só o teatro é um meio de propaganda, como também é o meio mais eficaz, mais firme, mais insinuante.
É justamente o que não temos.
As massas que necessitam de verdades, não as encontrarão no teatro destinado à reprodução material e improdutiva de concepções deslocadas da nossa civilização, — e que trazem em si o cunho de sociedades afastadas.
É uma grande perda; o sangue da civilização, que se inocula também nas veias do povo pelo teatro, não desce a animar o corpo social: ele se levantará dificilmente embora a geração presente enxergue o contrário com seus olhos de esperança.
Insisto pois na asserção: o teatro não existe entre nós: as exceções são esforços isolados que não atuam, como disse já, sobre a sociedade em geral. Não há um teatro nem poeta dramático...
Dura verdade, com efeito! Como! pois imitamos as frivolidades estrangeiras, e não aceitamos os seus dogmas de arte? É um problema talvez; as sociedades infantes parecem balbuciar as verdades, que deviam proclamar para o próprio engrandecimento. Nós temos medo da luz, por isso que a empanamos de fumo e vapor.
Sem literatura dramática, e com um tablado, regular aqui, é verdade, mas deslocado e defeituoso ali e além, — não podemos aspirar a um grande passo na civilização. À arte cumpre assinalar como um relevo na história as aspirações éticas do povo — e aperfeiçoá-las e conduzi-las, para um resultado de grandioso futuro.
O que e necessário para esse fim?
Iniciativa e mais iniciativa.
III O CONSERVATÓRIO DRAMÁTICO
A literatura dramática tem, como todo o povo constituído, um corpo policial, que lhe serve de censura e pena: é o conservatório.
Dois são, ou devem ser, os fins desta instituição: o moral e o intelectual. Preenche o primeiro na correção das feições menos decentes das concepções dramáticas; atinge ao segundo analisando e decidindo sobre o mérito literário — dessas mesmas concepções.
Com estes alvos um conservatório dramático é mais que útil, é necessário. A crítica oficial, tribunal sem apelação, garantido pelo governo, sustentado pela opinião pública, é a mais fecunda das críticas, quando pautada pela razão, e despida das estratégias surdas.
Todas as tentativas, pois, todas as idéias para nulificar uma instituição como esta, é nulificar o teatro, e tirar-lhe a feição civilizadora que por ventura lhe assiste.
Corresponderá à definição que aqui damos desse tribunal de censura, a instituição que temos aí chamada — Conservatório Dramático? Se não corresponde, onde está a causa desse divórcio entre a idéia e o corpo?
Dando à primeira pergunta uma negativa, vejamos onde existe essa causa. É evidente que na base, na constituição interna, na lei de organização. As atribuições do Conservatório limitam-se a apontar os pontos descarnados do corpo que a decência manda cobrir: nunca as ofensas feitas às leis do país, e à religião... do Estado; mais nada.
Assim procede o primeiro fim a que se propõe uma corporação dessa ordem; mas
o segundo? nem uma concessão, nem um direito.
Organizado desta maneira era inútil reunir os homens da literatura nesse tribunal; um grupo de vestais bastava.
Não sei que razão se pode alegar em defesa da organização atual do nosso Conservatório, não sei. Viciado na primitiva, não tem ainda hoje uma fórmula e um fim mais razoável com as aspirações do teatro e com o senso comum.
Preenchendo o primeiro dos dois alvos a que deve atender, o Conservatório, em vez de se constituir um corpo deliberativo, torna-se uma simples máquina, instrumento comum, não sem ação, que traça os seus juízos sobre as linhas implacáveis de um estatuto que lhe serve de norma.
Julgar de uma composição pelo que toca às ofensas feitas à moral, às leis e à religião, não é discutir-lhe o mérito puramente literário, no pensamento criador, na construção cênica, no desenho dos caracteres, na disposição das figuras, no jogo da língua.
Na segunda hipótese há mister de conhecimentos mais amplos, e conhecimentos tais que possam legitimar uma magistratura intelectual. Na primeira, como disse, basta apenas meia dúzia de vestais e duas ou três daquelas fidalgas devotas do rei de Mafra. Estava preenchido o fim.
Julgar do valor literário de uma composição, é exercer uma função civilizadora, ao mesmo tempo que praticar um direito do espírito; é tomar um caráter menos vassalo, e de mais iniciativa e deliberação.
Contudo por vezes as inteligências do nosso Conservatório como que sacodem esse freio que lhe serve de lei, e entram no exercício desse direito que se lhe nega; não deliberam, é verdade, mas protestam. A estátua lá vai tomar vida nas mãos de Prometeu, mas a inferioridade do mármore fica assinalada com a autópsia do escopro.
Mas ganha a literatura, ganha a arte com essas análises da sombra? Ganha, quando muito, o arquivo. A análise das concepções, o estudo das prosódias, vão morrer, ou pelo menos dormir no pó das estantes.
Não é esta a missão de um Conservatório dramático. Antes negar a inteligência que limitá-la ao estudo enfadonho das indecências, e marcar-lhe as inspirações pelos artigos de uma lei viciosa.
E — note-se bem! — é esta uma questão de grande alcance. Qual é a influência de um Conservatório organizado desta forma? E que respeito pode inspirar assim ao teatro?
Trocam-se os papéis. A instituição perde o direito de juiz e desce na razão da ascendência do teatro.
Façam ampliar as atribuições desse corpo; procurem dar-lhe outro caráter mais sério, outros direitos mais iniciadores; façam dessa sacristia de igreja um Tribunal de censura.
Completem, porém, toda essa mudança de forma. Qual é o resultado do anônimo? Se o Conservatório é um júri deliberativo, deve ser inteligente; e por que não há de a inteligência minguar os seus juízos? Em matéria de arte eu não conheço suscetibilidades nem interesses. Emancipem o espírito, hão de respeitar-lhe as decisões.
Será fácil uma emancipação do espírito neste caso? — É. Basta que os governos compreendam um dia esta verdade de que o teatro não é uma simples instituição de recreio, mas um corpo de iniciativa nacional e humana.
Ora, os governos que têm descido o olhar e a mão a tanta coisa fútil, não repararam ainda nesta nesga de força social, apeada de sua ação, arredada de seu caminho por caprichos mal-entendidos, que a fortuna colocou por fatalidade à sombra da lei.
Criaram um Conservatório Dramático por instinto de imitação, criaram uma coisa a que tiveram a delicadeza ou mau gosto de chamar teatro normal, e dormiram descansados, como se tivessem levantado uma pirâmide no Egito.
Ora, todos nós sabemos o que é esse Conservatório e este teatro normal; todos nós temos assistido às agonias de um e aos desvarios do outro; todos temos visto como essas duas instituições destinadas caminharem de acordo na rota da arte, divorciaram-se de alvo e de estrada. O Conservatório comprometeu a dignidade do seu papel, ou antes o obrigaram a isso, e o teatro, acordando um dia com instinto de César, tentou conquistar todo o mundo da arte, e entreviu também que lhe cumpria começar a empresa por um tribunal de censura.
Com esta guerra civil no mundo dramático, limitadas as decisões de censura, está claro, e claro a olhos nus que a arte sofria e com ela a massa popular, as platéias. A censura estava obrigada a suicidar-se de um direito e subscrever as frioleiras mais insensatas que o teatro entendesse qualificar de composição dramática.
Este estado de coisas que eu percebo, inteligência mínima como sou, será percebido também pelos governos? Não é fácil de aceitar a hipótese negativa, porquanto evidentemente não os posso considerar abaixo de mim na ótica do espírito. Concordo pois, que os governos não têm sido estranhos nesta anarquia da arte, e então uma negligência assim, depõe muito contra a consciência do poder.
Não há fugir daqui. Onde está esse projeto sobre a literatura dramática apresentado há tempos na câmara temporária? Era matéria de contrabando, e as aspirações políticas estavam ocupadas em negócios que visavam outros alvos mais sólidos ou pelo menos mais reais. Esse projeto, dando um caráter mais sério ao teatro, abria as suas portas às inteligências dramáticas por meio de um incentivo honroso. Trazia em si um princípio de vida: lá foi para o barbante do esquecimento!
É simples, e não carece de larga observação: os governos em matéria de arte e literatura olham muito de alto; não tomam o trabalho de descer à análise para dar a mão ao que o merece.
Entretanto o que se pede não é uma vigilância exclusiva; ninguém pretende do poder emprego absoluto dos seus sentidos e faculdades. Nesta questão sobretudo é fácil o remédio; basta uma reforma pronta, inteiriça, radical, e o Conservatório Dramático entrará na esfera dos deveres e direitos que fazem completar o pensamento de sua criação.
Com o direito de reprovar e proibir por incapacidade intelectual, com a viseira levantada ao espírito da abolição do anônimo, o Conservatório, como disse acima, deixa de ser uma sacristia de igreja para ser um tribunal de censura.
E sabem o que seria então esse tribunal? uma muralha de inteligência às irrupções intempestivas que o capricho quisesse fazer no mundo da arte, às bacanais indecentes e parvas que ofendessem a dignidade do tablado, porque infelizmente é fato líquido, há lá também uma dignidade.
O Conservatório seria isso e estaria nas linhas do seu dever e de seu direito.
Mas no meio destes reparos, resta ainda um fato importante — a literatura dramática.
Com uma reforma no Conservatório, parece-me claro que ganhava também a arte escrita. Não temos (ninguém será tão ingênuo que confesse esse absurdo) não temos literatura dramática, na extensão da frase; algumas estrelas não fazem uma constelação: são lembranças deixadas no tablado por distração, palavras soltas, aromas queimados, despidos de todo o caráter sacerdotal.
Não podia o Conservatório tomar um encargo no sentido de fazer desenvolver o elemento dramático na literatura? As vantagens são evidentes — além de emancipar o teatro, não expunha as platéias aos barbarismos das traduções de fancaria que compõem uma larga parte dos nossos repertórios.
Mas, entendam bem! inculco esse encargo ao Conservatório, mas a um Conservatório que eu imagino, que além de possuir os direitos conferidos por uma reforma, deve possuir esses direitos de capacidade conferidos pela inteligência e pelos conhecimentos.
Não é ofender com isto as inteligências legítimas do atual Conservatório. Eu não nego o sol; o que nego, ou pelo menos o que condeno em consciência são as sombras que não dão luz e que mareiam a luz.
Um Conservatório ilustrado em absoluto é uma garantia para o teatro, para a platéia e para a literatura.
Para fazê-lo assim basta que o poder faça descer essa reforma tão desejada.
Textos-Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. II, 1994.
Crítica Teatral, Machado de Assis. Rio de Janeiro: Edições W.M. Jackson, 1938.
Publicado originalmente em O Espelho,I, 25 de set.; II, 02 de out.; 25 de dez. de 1859;
A Marmota, Rio de Janeiro, 16 de março de 1860.