Nesses dois primeiros dias do mês de novembro a Igreja olha para os Céus - ontem rezou em homenagem àqueles que contemplam a Santíssima Trindade e hoje reza por aqueles que aguardam em paciente agonia a eterna e infinita visão. Posto estas palavras de Bloy, escritas pouco tempo antes de sua morte, em memória de meus mortos e peço aos que o lerem uma oração à Virgem Santíssima, Rainha do Céu e da Terra, por esses queridos parentes e amigos - especialmente por meu pai, falecido em fevereiro deste ano da Graça de Dois Mil e Dez.
Requiem eternam donna eis, Domine, et lux perpetua luceat eis.
Sou só. Tenho contudo uma mulher e duas filhas que me amam e que amo. Tenho afilhados e afilhadas que parecem ter sido escolhidos pelo próprio Espírito Santo. Tenho amigos fiéis, atestados, bem mais numerosos do que é comum.
Mas, mesmo assim, sou só em minha espécie. Estou só na antecâmara de Deus. Quando chegar a vez de eu me apresentar, onde estarão aqueles que amei e que me amaram? Sei muito bem que os que sabem rezar rezarão por mim de todo o coração, mas como estarão longe então e que solidão avassaladora diante de meu Juiz!
Quanto mais se está próximo de Deus, mais se está só. É o infinito da solidão.
Naquele momento, todas as Palavras santas, lidas tantas vezes em meu escuro porão, serão manifestas para mim, e o Preceito de odiar pai, mãe, filhos, irmãos, irmãs, e até a própria alma, quando se quer seguir Jesus, pesará sobre mim como uma montanha de granito incandescente.
Onde estarão as humildes igrejas com paredes tão doces em que muitas vezes rezei com tanto amor pelos vivos e pelos defuntos? Onde estarão as diletas lágrimas que foram minha esperança de pecador, quando eu não puder mais amar e sofrer? Em que se terão transformado meus pobres livros, em que investiguei a história da Trindade misericordiosa?
Em quem, em quê me apoiar? As preces daqueles bem-amados que trouxe à Igreja terão o tempo ou a força de me alcançar? Nada me garante que o Anjo a quem foi confiada minha guarda não estará ele mesmo tremendo de compaixão e tiritando de frio como um pobre mal vestido esquecido à soleira da porta. Estarei inefavelmente só e sei de antemão que não terei sequer um segundo para me precipitar no abismo de luz ou no abismo de trevas.
- Sou obrigada a te acusar! dirá minha consciência, e meus mais ternos amigos confessarão, de infinitamente longe, sua impotência. Defende-te como puderes, pobre infeliz!
- É verdade que a ti devemos, diante de Deus, a vida de nossas almas, dirão soluçando, e isto nos faz esperar que a tua será tratada com doçura. Mas vê... há entre nós e ti o grande Caos da Morte. És agora inimaginável e participas da Solidão inimaginável. O que podemos é espremer nossos corações rezando por ti. Se não foste absolutamente um discípulo, se não vendeste tudo e não abandonaste tudo, sabemos que estás lá onde mil anos são como um dia e que um único olhar dos Olhos de teu Juiz pode ter a velocidade do raio ou a inexprimível duração de todos os séculos. Pois não antevemos nada senão que estás inconcebivelmente só e que se um de nós pudesse chegar onde estás não conseguiria te reconhecer. Mas até isto nos é impossível compreender. Fica com Deus, então, até a hora desconhecida do Julgamento universal que é outro mistério ainda mais impenetrável.
Adjuro te per Deum vivum, disse o Príncipe dos sacerdotes para obrigar Jesus a falar. Essa intimação prodigiosa que abalou os próprios astros permanece ainda, e este será o último clamor da humanidade, quando ela mesma estiver só, no final dos tempos, no incompreensível vale de Josafá.
Méditations d'un Solitaire en 1916, ed. Mercure de France, Paris, s/d, p. 13-16.